sábado, 26 de fevereiro de 2011

Língua portuguesa: Linguagens

Luís Fernando Veríssimo –
"Mé", copyright O Estado de S. Paulo, 30/01/01.
"Um dia, não se sabe como nem por que, os carneiros começam a falar. O primeiro caso é na Austrália: um está sendo tosado e quando o aparelho pinica a sua pele solta um ‘Ai!’ e depois um ‘Cuidado, pô’, ou o equivalente em inglês australiano.
Depois surgem notícias de que um fazendeiro americano flagrara um grupo de carneiros cochichando entre si. Tinham parado ao ver o fazendeiro, e disfarçado, mas o fazendeiro ouvira o bastante para desconfiar que estavam tramando alguma coisa, talvez uma fuga. O certo é que falavam, ou cochichavam, como gente.
Depois é num abatedouro, na Europa. Quando chega a sua vez de ser abatido, um carneiro começa a gritar ‘Não! Não!’ e tem que ser retirado da fila para não agitar os outros. É o único carneiro do lote a ser sedado antes da execução.
Algumas semanas depois, não um, mas vários carneiros protestam em altos brados antes de serem abatidos. Gritam coisas desconexas, mas é claro que têm uma noção do fim que os espera, e, se sua argumentação é confusa, sua inconformidade é clara.
Um pastor da Nova Zelândia conta que passou a conversar com seus carneiros depois que um, para a sua surpresa, lhe disse ‘Bom dia’. Confirma que nenhum tem um discurso, assim, muito coerente, dada a sua pouca familiaridade com a fala, e alguns recaem num ‘mé, mé’ automático enquanto tentam sistematizar o pensamento. Mas, se eles não têm uma idéia definida do que querem, sabem bem o que não querem. Não querem mais ser tratados como carneiros.
Instala-se o pânico, primeiro na indústria da carne (como se não bastasse a vaca louca, agora o carneiro loquaz!), depois em outros setores da economia mundial. Se os ovinos falam, o que impedirá os suínos de também se manifestarem? E os bovinos de pedirem a palavra? E se a rebeldia se alastrar pelo mundo vegetal? E se as árvores inventarem de gemer de dor e gritar slogans ambientalistas à mera aproximação de uma motosserra? Em breve todas as comodidades do mundo estariam dando palpite sobre o seu próprio destino.
Seria o caos.
Alguns analistas sustentam que os carneiros falantes são um fenômeno passageiro. Outros dizem que só falar não dá aos carneiros nenhum poder, e que eles podem continuar sendo tratados como carneiros - embora, claro, a velha passividade fosse preferível à nova tagarelice, e os protestos na hora da morte peguem mal em termos de RP. E, afinal, as manifestações de carneiros são esparsas, em lugares dispersos, e não são uma ameaça tão grande assim.
- Mas - lembra alguém, dando voz ao grande medo... - E se eles fizerem um fórum?"

1.        O texto que você acabou de ler trata, de maneira engenhosa e irônica, dos protestos contra a globalização: o autor emprega a metáfora uma figura de linguagem que se fundamenta numa relação de semelhança, comente a metáfora que sustenta o texto.
2.       O texto extrapola a realidade ao atribuir uma característica exclusivamente humana aos carneiros – a produção de linguagem (“carneiro loquaz”) – e, dessa maneira, fazer referência aos grupos de protesto. A linguagem “carneriana”, porém, é marcada por vários problemas. Identifique-os e comente-os.
3.       Releia o penúltimo parágrafo e responda: só o fato de falar dá aos carneiros algum poder? Apresente algum argumento para sustentar sua resposta.
4.       Considerando que fórum era a praça pública na Roma antiga e que nesse espaço eram debatidos grandes temas, comente a última frase do texto, destacando o que representaria um fórum para a manifestação dos carneiros.

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