quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Conto: Bené


Bené sai apressado. Três e meia da tarde. Por sorte há uma agência no campus. Ônibus em 15 minutos. Chega à agência a tempo de fazer os pagamentos. No caixa, a moça avisa que só faz pagamento ali quem estuda ou é funcionário. Bené, por impulso, diz que é estudante e ganha tempo para encontrar artifícios que justifiquem sua afirmação. A moça pergunta o curso e Bené, sem titubear, arrisca um qualquer e, já com aquele aspecto monossilábico, típico dos soberbos, faz com que seus pagamentos sejam efetuados.
Ao sair do banco, sente-se observado por todos. Impressão. A certeza da mentira provoca sensações esquizofrênicas. Tomado pela subconsciência segue em direção à parada de ônibus. Destino: casa; afinal, Bené quer voltar ao ócio de suas férias, bruscamente interrompidas pelo pedido violento da mãe que, atrasada para o trabalho, se indigna ao ver o garoto na cama até tarde. Não aceita tamanha folga. Bené passa as madrugadas navegando na internet e acompanhando a programação de filmes num canal aberto 24 horas.
Não tarda e seu ônibus surge lá no horizonte. Bené reconhece-o pelas cores singulares e aspecto desgastado. Um grupo avança para que o motorista não passe sem parar. Negligentes e sem nenhum compromisso com os passageiros, obriga-os a tensão e atenção. Além do mais, quem perde só consegue outro após uma hora e meia de uma nova espera. Sobem algumas garotas. Bené, admirado e querendo aplicar um golpe no trocador, deixa-as subir primeiro. Quando chega a sua vez de pagar, usa uma nota alta que sobrara dos pagamentos e cujo troco já se previa que o trocador não tivesse para dar. Bené age como se fosse ele a vítima e o trocador o culpado de tudo.
Parada seguinte: sobem meia dúzia de idosos, todos amarrotados na parte dedicada a eles, brigam por um assento e se entreolham para impor quem deverá ficar sentado ou não dada a falta de lugares para todos. A esta altura, Bené tem a sensação de que está num inferno. Todos cheiram mal. As pessoas seguem observando a paisagem e num conformismo irritante. Bené se constrange por sentir tamanha repulsa. Conforma-se. Conclui que aquela situação jamais mudará. A essa altura só resta torcer para que chegue logo ao destino.
Numa terceira parada, sobe um homem de aparência surrada, olhar inebriante e dificuldade em falar. Todos se esquivam a fim de que o suposto bêbado não faça parte daquele grupo de pessoas com horário e vida respeitáveis. A recusa se dá, inclusive, por parte de Bené em cujo lugar, vazio, senta-se o beberrão. Alívio. Os demais passageiros estão livres de serem importunados. Ao senhor, resta a companhia de Bené que assume o papel de pobre coitado entre os demais. A solidariedade a Bené vem carregada de desobrigação. Por fim, quem suportaria passar tanto tempo ao lado de um bêbado fedido. Bené é consagrado vítima maior. Lança-se como algoz ao dirigir seu olhar ao moribundo.
Num primeiro momento, tudo segue seu curso normal. Todos estão em seu devido lugar, assumindo posturas esperadas; quando, de repente, o homem tenta se expressar. Neste momento, fica evidenciada a sua total deficiência física. O homem, a quem todos menosprezavam, passa a ser visto como a maior vítima – e, como é preciso achar um culpado, não resta outra opção a não ser reverter olhares de julgamentos. Bené é destruído pela rejeição à sua indiferença ao pobre coitado que, ao descer, provoca outra reação: a total indiferença com que os passageiros seguem o percurso.
Bené, que mal queria sair de casa, consegue, numa rápida saída, ser herói, vítima e vilão, em circunstâncias que fogem à lógica dessas definições. Finalmente chega ao seu ponto de partida. Desce e finaliza a sua experiência de segregar-se entre os pobres. Já em casa, tranca-se, liga o computador, prepara seu quiçuqui, que acompanha às sobras do almoço, e saboreia a doce sensação de pertencer a duas realidades.
Max Jefferson, Bené, 6/6/2007.



CONTO

Do lat. comentum, in. (invenção, ficção, plano, projecto), ligado ao v. contueor, eris (olhar atentamente para, contemplar, ver, divisar). Narração oral ou escrita (verdadeira ou fabulosa); obra literária de ficção, narração sintética e monocrónica de um fato da vida. Podemos afirmar que o contar é tão antigo quanto a vida em comunidade, pois é inerente à natureza humana, o falar, a necessidade, de comunicarmos ao outro o que sentimos, descobrimos, queremos desejamos, etc. Como o é também  a curiosidade de ouvir, conhecer, sabermos dos outros. E cada qual contando e ouvindo de acordo com sua imaginação, fantasia, temperamento. Fácil é imaginarmos que, em tempos primitivos, foi das diferenças de temperamento ou fantasia dos que falavam, que foram surgindo aqueles que fabulavam. Isto é, os “contadores”, aqueles que (por particular magia da voz e da imaginação) fabulavam os fatos ou acontecimentos e davam-lhes uma forma-de-dizer sedutora que seus ouvintes passavam a repetir e que se transformava na versão dominante, no conto que, de geração para geração, era narrado e  transformado em detalhes ou variantes, pois como diz o ditado: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.
         Juan Valera (1824-1905), notável escritor e erudito humanista espanhol, analisando a omnipresença do conto na tradição de todos os povos da antiguidade (mesmo naqueles que desconhecem poesia épica, filosofia ou legalização), justifica o fenónemo como resultante da necessidade humana de conhecer e de comunicar-se: “O pouco comum (e difícil) que era a comunicação dos homens de uma região com outras; as vagas notícias sobre a geografia e o  perigo das peregrinações por mar e por terra, deram origem a multidões de histórias, que se transformarem em contos ou novelas. Gigantes enormes e descomedidos, ogros que viviam de carne humana, pigmeus que combatiam contra gruas, entes fantásticos, ciclopes de um só olho, faunos e sátiros e centauros; repúblicas e reinos que não se sabe onde se localizam ou que afundaram no seio dos mares, tudo isto foi aparecendo e dando assunto a mil narrativas orais, muitas das quais foram escritas depois e criaram a tradição dos contos.” (apud Sainz Robles).
         A verdade é que essa “tradição” está fundamentada em  copiosas colecções de contos exemplares ou licenciosos, contos maravilhosos e contos alegóricos ou contos satíricos; miscelâneas de fábublas orientais e esópicas, apólogos, parábolas, alegorias, sermões, anedotas satíricas ou picantes que surgiram na Idade Média  (séc. X-XV) e constituem hoje uma verdadeira floresta de livros  e  textos, recolhidos de uma milenar tradição oral, cuja origem primeira foi localizada na Índia, milénios antes de Cristo, e dali derramou-se por todo o mundo conhecido.
         Traçar o panorama exato das origens, peregrinação, multiplicação e difusão do conto no mundo, é tarefa impossível, pois como género literário dos mais antigos, ele é indissociável da vida. Como esta, o conto foge a qualquer definição absoluta ou tentativa de classificação inquestionável. A intrincada rede de reorganizações, classificações, definições e hipóteses construídas, através dos séculos, por milhares de estudiosos, apenas nos permite detectar algumas linhas de conexão entre as épocas, pontuadas por livros e autores que, de maneira indiscutível, se transformaram em marcos históricos do percurso do conto como género literário. Tentaremos um quadro geral dessas “linhas de conexão” e “marcos históricos”, selecionadas por uma perspectiva que se pretende actual.
O conto literário europeu (e por extensão, o americano) é de origem oriental, ou mais precisamente, hindu. Há concordância entre os mais importantes estudiosos e pesquisadores que pelo menos duas colecções de contos orientais estão na origem (ou serviram de paradigma) das narrativas que fizeram o encanto dos ocidentais europeus durante a Idade Média e a Renascença. Essas duas  colecções-fontes são: o Pantschatantra (Os Cincos Livros) e o Hitopadexa (A Instrução Útil), surgidas séculos antes de Cristo.
         Ambas pertencem ao grande caudal da literatura hindu, escrita em sânscrito (idioma sagrado da Índia) e existente bem antes do aparecimento de Buda (nascido no séc. V. aC.). Literatura da qual, os sacerdotes da nova religião, escolheram alguns episódios exemplares (contos, apólogos, lendas ...) para difundiram na Índia e na China os preceitos budistas. Com o passar dos séculos, e já despidos do seu conteúdo ou intencionalidade  religosos, tais contos se espalharam pelo mundo, em versões chinesas, persas, árabes, gregas, latinas, etc.
         O mundo do Pantschatantra e do Hitopadexa é o do maravilhoso ilimitado  que desfaz as fronteiras entre real e imaginado, e onde homens e animais convivem em perfeita  igualdade. Os assuntos, que vão do quotidiano mais simples ao fantástico mais inverossímel, alimentaram a imaginação da humanidade durante séculos. A estrutura formal dessas colectâneas é labiríntica: os episódios  penetram uns nos outros e se embaralham. Como se diz em Mar de  Histórias: “Os contos estão entrelaçados: a primeira história não acabou, e uma personagens começa a narrar outra, na qual por sua vez, outras se acham encravadas. Acotovelam-se nesse estranho labirinto, as figuras mais singulares: a mulher que deu à luz uma cobra; o passáro de duas cabeças que perece por causa de  uma briga entre elas, o chacal azul que renegou seus irmãos de raça, as serpentes indiscretas que, numa desavença, imprudentemente revelam cada uma o segredo da outra, em presença de uma  mulher ...” (A. Buarque & P. Rónai). A esses episódios, acrescentamos o célebre conto de critica aos sonhos altos demais: o “Bramane e a escudela de farinha” que,  em cada nação, ganhou uma nova versão: “O Monge e o jarro de  manteiga “ (Calila e Dimna); “Perrette, a leiteira e o jarro de leite” (La Fontaine); “Mofina Mendes e o jarro de azeite” (Gil Vicente), “Dona Truhana” (Conde Lucanor), “Elza, a sábia” (Irmãos Grimm) etc. Conto exemplar que até hoje vem sendo reinventado sob as mais diferentes formas.
         Dessas duas colecções famosas derivaram outras três: Calila e Dimna, Sendebar e Barlaam y Josafat que engrossaram o caudal de narrativas que fizeram germinar o conto ou a novelística européia. Acrescente-se, ainda, como colecção--fonte, As Mil e Uma Noites (espécie de desaguadouro das narrativas orientais das mais diversas origens), cuja versão árabe do séc. VIII (que serviu de texto para a tradução francesa de Gallan, no  início do séc. XVIII foi uma das maiores influências recebidas pela novelística ocidental europeia.
         Claro está que entre essas colectâneas inaugurais, surgidas antes de Cristo, e a produção ocidental europeia, tal como a conhecemos hoje, houve, a partir da Idade Média, uma série de colecções que, em cada nação, adaptando ou reinventando as primeiras, se tornaram, por sua vez, as principais fontes de difusão dos contos nas nações modernas do ocidente. Citando as mais importantes: O Conde Lucanor de Juan Manuel (Espanha - séc. XIV), Contos de Canterbury de Geoffrey Chaucer (Inglaterra - séc. XIV); Decameron de Boccaccio (Itália - séc. XIV) e outros de repercussão mais restrita. Em todos eles, a  exemplaridade vai par e passo com a sabedoria prática, o anedótico, o picaresco, a malícia apenas sugerida ou transformada em vulgaridade picante, por vezes obscena. Em todos eles, destaca-se também o aperfeiçoamento ou o burilamento da língua em que falavam ou escreviam, num momento em que as novas línguas adquiriam sua feição definitiva.
         Desses “marcos históricos”, brotaram dezenas de outras colectâneas, em que se misturavam contos, apólogos, fábulas, alegorias, lendas ... e que, por duas vias (a tradição oral, popular e  a tradição escrita, erudita) geraram o desmesurado acervo da novelística medieval e renascentista europeia (séc. X-XV), hoje transformada, para nós, em Tradição ou Folclore ... que o nosso século empenha-se em redescobrir ou reinventar.
         Desde as origens, o conto é definido, formalmente, pela brevidade : uma narrativa curta e linear, envolvendo poucas personagens; concentrada em uma única acção, de curta duração temporal e situada num só espaço. Dessa necessidade de brevidade, deriva a grande arte do conto que, mais que qualquer outro género em prosa, exige que o escritor seja um verdadeiro alquimista na manipulação da palavra.
         Por muitas que tenham sido as discordâncias entra escritores e teóricos acerca da forma “conto” (Mário de Andrade chegou a dizer: “É conto tudo o que o escritor chamar de conto.”), um dado persiste como indiscutível, ao analisarmos em conjunto aqueles  consagrados pelos tempos: a brevidade ou densidade dramática e sedução de linguagem. Enquanto o romance se constrói com várias células dramáticas, pois procura expressar a vida humana em seu todo complexo, através de um conflito individual,  o conto expressa apenas uma “fatia”, um “momento” dessa vida, um fragmento expressivo de todo. É dessa intencionalidade que surge a técnica de construção de conto: concentração de elementos (e não, expansão, como acontece no romance); uma só célula dramática, um único eixo temático, um único conflito. Os quatro elementos básicos que entram em sua composição (personagens, factos, ambiente e tempo), são iguais ao romance, as apresentam-se condensados, conduzidos sem desvios para o desfecho final. O conto exige, acima de tudo, a arte da alusão, da sugestão ... daí o ter-se transformado na forma predileta das narrativas fantásticas e de suspense.
         Se partirmos das origens da literatura portuguesa, nos séculos medievais, veremos que os registos  históricos apontam a circulação de “contos” de tradição oral (reunidos por Teófilo Braga em Livros Populares Portugueses, 1881), vindos da grande fonte oriental, já referida. Só no séc. XVI, aparece o primeiro contista português, Gonçalo Fernandes Trancoso, autor da colectãnea Contos e Histórias Proveito e Exemplo (1575), trinta e nove narrativas (com raízes no Decameron  de Boccaccio) que tiveram larga popularidade nos séculos XVII e XVIII. Inclusive, essa colectânea foi uma das grandes fontes de histórias para crianças que, hoje, fazem parte do acervo da Literatura Infantil Clássica em Portugal e no Brasil (note-se que no Nordeste brasileiro, até hoje, quaiquer histórias populares são chamadas de “Histórias de Trancoso”):
         A Era Clássica (séc. XVII e XVIII), época de fermentação de ideias e transformações estruturais e não, de sínteses, não foi propícia ao cultivo do conto. As formas que então circularam, como histórias curtas, foram os apólogos ou textos exemplares de Manuel Bernardes (Nova Floresta, Mistérios da Virgem ...) e de Sóror Maria do Céu (Aves Ilustradas, 1734).
         A Era Romântica (séc. XIX) foi marcada pelo género romance (aquele que dava uma visão global da Sociedade que então se consolidava. Em sua primeira fase (1ª- metade do séc. XIX), o romantismo conheceu alguns romancistas que também escreveram contos, no geral de natureza histórica ou eram embriões de romances, isto é, não correspondiam à visão-de-mundo fragmentada e sintética que seria  própria do género. (Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, 1851; Rebelo da Silva, Contos e Lendas, 1873 e Trindade Coelho, Meus Amores, 1891).
         Com a geração Realista (2ª. Metade do séc. XIX) o conto alcança prestígio na prosa dramática de Fialho de Almeida (Contos, 1881 e A Cidade do vício, 1882). Raul Brandão estreia como escritor naturalista, com Impressões e Paisagens, 1890. No geral, o grande número de contos realistas publicados não chegou a bom nível literário, pois como parecia um “género fácil” atraiu um sem número de principiantes que tenham ter acesso à carreira de escritores. Inclusive Eça de Queirós publica  contos que, ou são pequenos romances (Singularidades de Uma Rapariga Loura, 1873) ou são embriões de romance (Civilização, 1874) transformado depois no romance A Cidade e as Serras, publ. post.).
         No início do século (anos 10/20) surgem simultaneamente diferentes escritas de contos: a forma oscilante entre lirismo e realismo  (Carlos Malheiro Dias,  A Vencida, 1907; António Patrício, Serão Inquieto, 1910; Manuel Teixeira Mendes, Gente Simples, 1909); a forma oscilante entre civilização e regionalismo (Aquilino Ribeiro, Jardim das Tormentas, 1913; Adelaide Félix, Miragens Torvas, 1921 e Personae, 1926), a experimental cubista ou futurista (Almada Negreiros, Frisos, 1915, Saltimbancos,  1916 e K4 Quadrado Azul, 1917). Nesse período, a narrativa romanesca, sob a influência  do Simbolismo/Decadentismo, começa a esgarçar-se, como trama, mas não chega à síntese exigida pelo conto (Raul Brandão, Húmus, 1917 e Mário de Sá-Carneiro, Princípio, 1912 e Céu em Fogo, 1915).
         Em finais dos anos 20 (coincidindo com o surgimento da revista Presença, 1927-1940) o género conto entra em ascensão. Contos centrados na vida comum, quotidiana, “filtrada” por um eu-narrado consciente do sem-sentido da existência ou tocado pela força indomável na vida natural. Nessa linha, destacam-se: Irene Lisboa (Contarelos, 1926; Uma Mão cheia de nada e Outra de coisa nenhuma, 1955; Queres ouvir? Eu Conto, 1958); Braquinho da Fonseca, (Zonas, 1931; Caminhos Magnéticos, 1938; Rio Turvo, 1945 e Bandeira  Preta, 1956); Miguel Torga (Bichos, 1940; Contos da Montanha, 1941; O Senhor Ventura, 1943; Novos Contos da Montanha, 1944 e Vindima, 1945); José Marmelo e Silva (O Sonho e a Aventura, 1943) e José Régio (Histórias de Mulheres, 1946).
         No período inicial do Neo-Realismo (anos 40/50 Humanismo Bramático apesar do predomínio do romance, o conto destacou-se na obra  de inúmeros romancistas, José Cardoso Pires (Caminheiros e Outros Contos, 1949; Histórias de Amor?, 1952; Jogos de Azar, 1963, O Burro em Pé, 1979 e A República dos Corvos, 1988) Manoel da Fonseca (A Aldeia Nova, 1942; O Fogo e as Cinzas, 1951; Um Anjo no Trapézio, 1968 e Tempo de Solidão, 1973); Manuel Ferreira (Grei, 1944; Morna, 1948; Morabeza, 1958 e Terra Trazida, 1972); Mário Braga (Nevoeiro, 1944; Histórias de Vila, 1958; Quatro Reis, 1957; Os Olhos e as Vozes; 1971; Serranos, 1948); Domingos Monteiro (Contos do dia e da noite, 1952; Histórias Castelhanas, 1955; Histórias deste Mundo e do Outro, 1961; O Dia Marcado, 1963 e Contos de Natal, 1964).
A partir dos anos 50/60 (período do realismo Contraditório, ou melhor, fusão da consciência participante com o  subjectivismo existencial), o conto, embora ainda cultivado por alguns romancistas e  novelistas, vai aos poucos perdendo seu contorno de “intriga” ou de uma “situação” a ser narrada, para se perder na interioridade de um eu-narrador em conflito com o meio ou perdido em seu próprio labirinto. Destacam-se nesse período: Urbano Tavares Rodrigues, (A Porta dos Limites, 1952; Aves da Madrugada, 1959; Nus e Suplicantes, 1960, Dias Lamacentos, 1965, Contos da Solidão, 1970 e Filipa nesse dia, 1989); José Rodrigues Miguéis (Léah e outras Histórias, 1958; Onde a Noite se acaba, 1946; Pass(ç)os confusos; 1982; Além do Quadro, 1983 e Sete Perdida, 1995); Maria Judite Carvalho (Tanta Gente, Mariana, 1959; As Palavras Poupadas, 1961; Paisagem sem barcos, 1963; Flores ao Telefone, 1968; Os Idólatras, 1969; Tempo de Mercês, 1973; Além do quadro, 1983 e Seta perdida, 1995); Sophia de Mello Breyner Andresen (Contos infantis: A Menina do mar, 1958; O Rapaz de bronze, 1956; Contos Exemplares, 1962 e Histórias da Terra e do Mar, 1984); Maria da Graça Freira (As Estrelas moram  longe, 1948; Os Deuses não respondam, 1959; As Noites de Salomão Fortunato, 1964 e O Inferno está mais perto, 1971); Natália Nunes (A Mosca Verde e outros cotos, 1957).
         A partir do  Experimentalismo dos anos 60/70, a fragmentação  narrativa invadiu as formas tradicioanis do romance e novela e passou a competir com a forma sintética do conto, para registar apenas “fatias” de vida, momentos de vivências fragmentadas.  Desaparece o sentido do “todo” ou da unidade do viver. Talvez isso explique a escassez de contistas entre os escritores considerados de vanguarda ou pós-modernos (anos 60/90). A forma conto, actualmente, predomina nas áreas do non-sense, do fantástico, do mágico ou do absurdo (linha de Kafka, Borges, Cortázar ..), ou ainda, do erotismo, - áreas que têm limitada expressão na actual literatura portuguesa, com destaque para Herberto Helder (Os Passos em  Volta, 1963).
O conto surge no Brasil, nos primeiros séculos de colonização, difundido pelos portugueses, como narrativa oral. Assim o acervo dessa primitiva narrativa tem a mesma origem que a portuguesa; e ainda hoje circula entre o povo, principalmente nas regiões norte-nordeste, embora com variantes em que  se cruzam influências africanas e indígenas. Via de regra, tais “contos” são chamados de estórias de Trancoso.
         Como narrativa escrita, o conto aparece na literatura brasileira, na primeira metade do século XIX, no início do Romantismo. Escritos, segundo o modelo europeu, por intelectuais jornalistas e publicados em  jornais e revistas (Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, Salvador ...), esses primeiros textos conquistaram de imediato o público ledor e criaram a “febre do conto”. Joaquim Norberto, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Casimiro de  Abreu ... foram alguns dos romancistas e poetas românticos que se exercitaram no conto, mas sem ultrapassarem a mediania da escrita.
         O primeiro grande contista brasileiro surge no final so século XIX, Já no período realista: Joaquim Maria Machado de Assis, também grande romancista, cuja obra não foi ultrpassada pelo tempo, mostrando-se hoje essencialmente contemporânea. Entre seus contos, destacam-se: O Alienista; Teoria do Medalhão; Missa do Galo; A Chinela Turca; A Cartomante; Uns Braços ...
         Entre os contemporâneos de Machado de Assis, estão os contistas: Aluísio de Azevedo (Demónios, 1893), Artur de Azevedo (Contos Possíveis, 1889; Contos fora de moda, 1984; Contos Efêmeros, 1987; Contos Cariocas, 1928); Adelino Magalhães (Casos e Impressões, 1916; Visões, Cenas e Perfis, 1918; Tumulto da Vida,1920); Coelho Neto (Sertão, 1896; Apólogos, 1904; Água de Juventa, 1905; Treva, 1906; Banzo, 1993); Júlia Lopes de Almeida (Traços e Iluminuras, 1886 e Histórias da nossa Terra, 1907); Lima Barreto (Histórias e Sonhos, 1920) e Virgílio Várzea (Mares e Campos, 1894).
         No entre-séculos, com o crescente sentimento nacionalista (que reagia contra a hegemonia da cultura eurpeia, sobre o pensamento brasileiro) surge a corrente nativista ou sertanista que  encontra no conto sua melhor expressão para retratar a realidade brasileira nativa. Destacam-se nessa corrente: Afonso Arinos (Pelo Sertão, 1898); Alberto Rangel (Inferno Verde, 1908); Alcides Maya (Tapera, 1911;Alma Bárbara, 1922); Hugo de Carvalho Ramos (Tropas e Boiadas, 1917); Monteiro Lobato (Urupês, 1918; Cidades Mortas, 1919; Negrinha, 1920); Simões Lopes Neto (Lendas do Sul, 1913; Contos Gauchescos, 1912) e Valdomiro da Silveira (Caboclos, 1920; Nas Serras e nas Furnas, 1931; Mixuangos, 1937 e  Leréias, 1945).
         A partir do Modernismo (iniciado historicamente com a Semana de Arte Moderna em  S. Paulo, 1922), o conto vai crescendo em prestígio e já conquistando um “estilo brasileiro”  (narrativa de tonus oral, despretencioso, com o registo de linguajar quotidiano e dando acolhida também ao linguajar deturpado dos imigrantes que  alteram não só o vocabulário, mas também a estrutura da língua portuguesa). Destacam-se como contistas modernistas: António  Alcantara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda, 1927 e Laranja da China, 1928); João Alphonsus Guimaraens (Galinha Cega, 1931 e Pesca da Baleia, 1941) e Mário de Andrade (Os contos de Belazarte, 1934 e Contos Novos, 1947, post.).
         No decorrer dos anos 20/40, à medida em que o conto cresce em prestígio, vai ao mesmo e tempo perdendo suas característica formais de origem: narrativa curta que regista uma situação, uma “fatia” de vida, suficientemente expressiva para sugerir o drama humano em seu todo. O conto-século XX vai-se tornando mero registo circunstancial de factos do dia-a-dia e, divulgado principalmente através de revistas e jornais, passa a ser confundido com a crónica, sendo, inclusive, tratado como género “leve”, de entretenimento.
         Nos anos 40/50, o conto volta a ser a grande expressão capaz de sintetizar a complexidade da vida e, agora, já em linguagem e  espírito tipicamente “brasileiros”. Nesse período surgem quatro nomes que levam o conto (e o romance) brasileiro ao mais alto nível de eleboração literária e temática: João Guimarães Rosa, na linha regionalista-metafísica (Sagarana, 1946; Primeiras Estórias, 1962 ...); Clarice Lispector, na linha existencialista (O Lustre, 1946; A Cidade Sitiada, 1949; Alguns Contos, 1952; Laços de Família, 1960; A Legião Estrangeira, 1964; Felicidade Clandestina, 1971; A Imitação da Rosa, 1973; A Via Crucis do Copor, 1974; Onde Estiveste  de Noite, 1974; A Bela e a Fera, 1979, post.); Murilo Rubião, na linha do Realismo Mágico ou Absurdo (O Ex. Mágico, 1947; A Estrela Vermelha, 1953; Os Dragões e os outros Contos, 1965; O Convidado, 1974; A Casa do Girassol Vermelho, 1978) e Lygia Fagundes Telles, na linha do humanismo dramático (Praia Viva, 1944; O Cacto Vermelho, 1949; Histórias do Desenconto, 1958; O Jardim Selvagem, 1965; Antes do Baile Verde, 1970; Seminário dos Ratos, 1977; Os Filhos Pródigos e Mistérios, 1981).
         A produção de contos no Brasil, nestes anos 60/90 (apesar da  grande voga do romance) tem sido expressiva, seja em qualidade, seja na diversificação de temas, estilos e problemáticas, seja como fusão das várias propostas modernas ou pós-
-modernas com  o modo-de-ser brasileiro. Destacam-se, nessa produção: Adélia Prado, Ana Maria Martins, Bernardo Élis, Dalton Trevisan, Edilberto Coutinho, Hermilo Borba Filho, Hilda Hilst, João António, Julieta Godoy Ladeira, Luiz Vilela, Márcia Denser, Marcos Rey, Marina Colasanti, Miguel Jorge, Moacyr Scliar, Nélida Piñon, Ricardo Ramos, Victor Giudice ...
         Embora com estilos e problemáticas diversas , todos eles expessam as linhas de força que dinamizam o conto contemporâneo: a  visão fragmentada própria do nosso século, - a visão de um mundo descentrado, onde o indivíduo perdeu o sentido último da vida e, reduzido a si mesmo ou à força/fraqueza de sua própria palavra, busque uma nova saida. Ou, sem saídas, só lhe restam as forças desmesuradas do erotismo, ou então testemunhar a violência gratuita que se alastrou pelo nosso universo em caos. Ou ainda, resgatar o Mito (que vem sendo um dos grandes trunfos, principalmente do romance contemporâneo)...

  APÓLOGO; EXEMPLO; FÁBULA; KURZGESCHICHTE; LENDA; LITERATURA ORAL; LITERATURA POPULAR; PARÁBOLA

BIB.:  A. Buarque de Holanda e Paulo Rónai, Mar de Histórias, 2 vols. (3ª. ed., 1980); Alfredo Bosi, O Conto Brasileiro Contemporâneo , 1975; António Hohlfeldt, Conto Contemporâneo Brasileiro, 1981; Armando Moreno, Biologia do Conto , 1987; Clare Hanson, Re-Reading the Short Story, 1989;  O Conto Brasileiro e sua Crítica, 2 vols., org. por Celuta Moreira Gomes, 1977; Elodia Xavier, Conto Brasileiro e sua Trajectória, 1987; G. Jean, Le  Pouvoir des contes, 1981; H. E. Bates, The Modern Short: A Critical Survey, 1976; Hallie Burnet,: On Writting the Story, 1993; Helmut Bonheim, Narrative Modes: Techniques of the Short Story, 1982; João Alves das Neves, Contistas Portugueses Modernos, (2ª. ed. rev. 1971); M.-L. Ténèze: “Introduction à l’étude de la littérature orale: le conte”, Annales, nº5 (1969); id.: “Du conte merveilleux comme genre”, Arts et traditions popularies, nº18 (1970); M. Menéndez y Pelayo, Orígenes de la novela, 1963; N.B. Gottlib, Teoria do Conto, 1985; Norman Friedman: "What Makes a Short Story Short?", in Essentials of the Theory of Fiction, ed. por Michael J. Hoffman e Patrick D. Murphy (2ºed., 1996); Nuno Júdice, O Espaço do Conto no Texto Medieval, 1991; Raimundo Magalhães Júnior, A  Arte do Conto , 1972; Susan Lohafer, Short Story Theory at a Crossroads, 1990; Suzanne C. Ferguson: "Defining Short Story: Impressionism and Form", in Essentials of the Theory of Fiction, ed. por Michael J. Hoffman e Patrick D. Murphy (2ºed., 1996); Temístocles Linhares, 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Contemporâneo, 1973; Valerie Shaw, Short Story: A Critical Introduction, 1983; V. Propp, Morfologia do Conto (Morfologija skazki, 1928; 2ª. ed., port. 1983).

  Nelly Novaes Coelho
Texto disponível em:
http://www2.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/C/conto.htm

Canto Intertextual




Passo os momentos a refletir
Na fugacidade ceciliana
Com paixões avassaladoras
Dos sonetos vinicianos
E na poesia antitética
Lírica e romântica
Numa ligação perfeita
Da poesia e do canto
De uma voz a caetanear
Compreendendo sempre mais
A construção de um Francisco
Que transita
Entre o simples e sublima
De um João e de uma Maria
Que passam por uma janela carolina
E nos enaltece com seus fantásticos
Cotidianos
Sem esquecer de uma pedra
Sempre no caminho
É Drummond que passa
Com suas cartas
Brincando de ser comum e ser poeta
E por que não a prosa bem poética
De uma vida tão seca
De um Graci tão seco
Pelas memórias de um cárcere
E por não citar todos
Citarei um Dalton
Aquele Trevisan
Em seu cemitério de elefantes
Fechando com um Gullar
Sim o Ferreira
Que esbanja audácia
Num poema tão sujo de tão belo
De tão poético e tão sincero
O contemporâneo nasceu
Enquanto eu nascendo
 [Max Jefferson – CANTO In.: Poesias de sensações. 2002.]

INTERTEXTUALIDADE

Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade significa relação entre textos.  Considerando-se texto, num sentido lato, como um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural, isto é, na ampla rede de significações dos bens culturais, pode-se afirmar que a intertextualidade é inerente à produção humana. O homem sempre lança mão do que já foi feito em seu processo de produção simbólica.  Falar em autonomia de um texto é, a rigor, improcedente, uma vez que ele se caracteriza por ser um “momento” que se privilegia entre um início e um final escolhidos.  Assim sendo, o texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada: um filme, um romance, um anúncio, uma música.  Entretanto, esses objetos não estão ainda prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores.  Cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída.  A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário.  Este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor.  A intertextualidade se dá, pois, tanto na produção como na recepção da grande rede cultural, de que todos participam. Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam com outros, propagandas que se utilizam do discurso artístico, poemas escritos com versos alheios, romances que se apropriam de formas musicais, tudo isso são textos em diálogo com outros textos: intertextualidade.
No sentido estrito, a palavra texto remete a uma ordem significativa verbal.  Dentro dessa ordem, a literatura vale-se amplamente do recurso intertextual, consciente ou inconscientemente.  Em razão disso, a intertextualidade faz-se operador de leitura. É importante marcar a primazia de Bakhtin em relação a esses estudos, divulgados por Julia Kristeva.  É dela o clássico conceito de intertextualidade: “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Por isso mesmo, Antoine Compagnon chama a atenção para o fato de que  “escrever, pois, é sempre rescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação”. (COMPAGNON, 1996, p.31)
Pode-se associar essas concepções ao estudo de Bakhtin sobre a inerente polifonia da linguagem, na medida em que todo discurso é composto de outros discursos, toda fala é habitada por vozes diversas. Analisando a obra de Dostoiévski, o teórico russo afirma que o romance seria uma forma dialógica por excelência, pelo fato de ser composto por discursos de várias naturezas, tais como: o jurídico, o epistolar, o popular, o político.
Na verdade, a intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção de autoria. Augusto de Campos, por exemplo, apropriando-se de variadas produções poéticas e musicais, num processo de colagem metalingüisticamente confessado, constrói um de seus sonetos em estilo non-sense, apontando desde o título para a forma em que será vazado.  Tal composição explicita o processo de construção de um texto apenas com recortes de outros.

Soneterapia 2*
tamarindo de minha desventura
não me escutes nostálgico a cantar
me vi perdido numa selva escura
que o vento vai levando pelo ar

se tudo o mais renova isto é sem cura
não me é dado beijando te acordar
és a um tempo esplendor e sepultura
porque nenhuma delas sabe amar
somente o amor e em sua ausência o amor
guiado por um cego e uma criança
deixa cantar de novo o trovador
pois bem chegou minha hora de vingança
vem vem vem vem vem sentir o calor
que a brisa do Brasil beija e balança

*para ser parcialmente cantado, agradecimentos a Augusto dos Anjos, Orestes Barbosa & Sílvio Caldas, Dante Alighieri, Vinícius de Morais & Tom Jobim, Sá de Miranda, Orestes Barbosa & Sílvio Caldas, Olavo Bilac, Noel Rosa & Rubens Soares, Décio Pignatari, Mark Alexander Boyd, Ary Barroso, João de Barro & Pixinguinha e Castro Alves.
(CAMPOS, 1974, p. 349).

Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição. Tomás Antônio Gonzaga retoma Camões.  Drummond retoma Gonzaga. Adélia Prado retoma Drummond. Eça de Queiroz relê Flaubert, relido também por Machado de Assis.  Esse diálogo, no entanto, não se dá sempre em harmonia.  Se a tradição pode, de certa forma, ser reiterada com as diferentes retomadas que dela se fazem, pode também ser relativizada ou mesmo negada.
Muitos dos romances de José Saramago, por exemplo, procedem a uma revisão crítica das tradições históricas portuguesas em sua relação com os discursos político e religioso.  Este é o caso de História do cerco de Lisboa, Memorial do convento e O evangelho segundo Jesus Cristo.   Outro escritor português contemporâneo, que relê a história – o período salazarista – despindo-a de seu caráter monumental, é Mário Cláudio em Tocata para dois clarins, por exemplo. Como o próprio título do romance deixa entrever, a voz oficial é fraturada para alojar vozes dissonantes.
No Brasil, nos romances de Alencar – Iracema e O Guarani - e Antônio Callado – A expedição Montaigne - que fazem do índio sua personagem principal, observa-se um tratamento diferenciado do tema, em dois momentos distintos: a visão idealizada, mas redutora, do século XIX, e a visão polêmica e crítica da atualidade.  A tradição é, assim, sempre revisitada, tornando-se diferenciada aos olhos dos escritores/leitores.
Um mesmo escritor pode  reler-se, utilizando-se  de textos que ele mesmo escreveu, o que resulta numa espécie de intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu conhecido texto No meio do caminho, para escrever Consideração do poema:

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski. (ANDRADE, 1978, p. 75)

Desvenda-se o mecanismo intertextual, na medida em que além de referir-se a si mesmo, o poeta confessa o furto que faz a outros poetas, incorporando-os duplamente em seu acervo.
Embaralhando mais as fronteiras discursivas, a obra de Jorge Luiz Borges é exemplo de um discurso híbrido que associa o ficcional e o teórico, evidenciando o papel da leitura na composição dos textos.  Observe-se, por exemplo, o conto Pierre Menard, autor do Quixote, em que se propõe o nível máximo da apropriação: escrever, linha por linha, a obra alheia e, mesmo assim, criar uma obra nova:
“Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote.  Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo.  Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.” (BORGES, 1995, p. 57)
Questiona-se o plágio, desqualificando-o como roubo.  É o mesmo que, teoricamente, faz Michel Schneider (1990) quando discute a questão da autoria:
“Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de atribuições, por que então assinar um texto defendendo essa intertextualidade absoluta? Se o texto moderno, segundo Barthes, essa ‘citação sem aspas’, por que deveria ficar ligado a um nome, uma vez que esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou indicar a origem?” (SCHNEIDER, 1990, p.43)
Borges, em outro texto – Kafka e seus precursores -, inverte o processo de produção textual quando transforma Kafka em modelo para aqueles que escreveram antes dele, criando, regressivamente, uma tradição.  Tudo isso porque o leitor ativa sua biblioteca interna a cada texto lido, estabelecendo nexos relacionais entre o que lê e o que já foi lido.  Atente-se, então, para o fato de que a intertextualidade, centrada também na figura do leitor, perturba qualquer possibilidade de cronologia rígida para a historiografia literária, na medida em que as associações feitas são livres.
Até mesmo o conceito de tradução é revisto, numa perspectiva intertextual, como uma leitura da obra, uma recriação.  Relativizam-se também as noções de cópia e modelo, fonte e influência.  Isso porque a cópia pode levar a uma releitura desconstrutora do modelo.  A crítica literária brasileira contemporânea, valendo-se de tais relativizações, produziu textos que nos permitem reler a própria história da colonização com novos olhos. Ensaios como “Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz (1989); “O entre-lugar do discurso latino-americano”, “Eça, autor de Madame Bovary”(1978) e  “Apesar de dependente, universal” (1982), de Silviano Santiago; e “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, de Haroldo de Campos (1992) integram esse debate.
Em qualquer nível, a produção simbólica é, pois, sempre uma retomada de outras produções, perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores. Apropriando-nos, então, de  Schneider, podemos afirmar:
“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’ vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a invenção, nunca tão nova que não se apóie sobre o já-escrito. (SCHNEIDER, 1990, p.71)
  TEXTUALIDADE

Obras citadas:
ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1981.________. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1973.
BORGES, Jorge Luis. Ficções.  6ª. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1995.
CAMPOS, Augusto. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4.ed, São Paulo: Perspectiva, 1992.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora  UFMG, 1996.KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PAULINO, Maria das Graças Rodrigues, WALTY, Ivete Lara Camargos, CURY, Maria Zilda Ferreira. Intertextualidades: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora Lê. 1997.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
________. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1989
Bib.: AA.VV.: Théorie d’ensemble (col. «Tel Quel», Paris, 1968); Daniel Bilous: “Intertexte/Pastiche: L’Intermimotexte”, Texte, 2 (1983); Gérard Genette: Palimpsestes: La Littérature au second degré (1982); Groupe Um (ed.): Revue d’esthétique, ¾ (1978); Jay Clayton e Eric Rothstein (eds.): Influence and Intertextualiaty in Literary History (1991); Jonathan Culler: “Presupposition and Intertextuality”, Modern Language Notes, nº 91, 6 (1976); Julia Kristeva: Sèméiôtikè. Recherches pour une sémanalyse (1969); id.: Le Texte du roman (1970); id.: La Révolution du langage poétique - L’Avant-garde à la fin du dix-neuvième siècle: Lautréamont et Mallarmé (1974); La Nouvelle Critique, nº especial (1968); Laurent Jenny (ed.): Poétique, nº27 (1976), ed. port.: Intertextualidades (Coimbra, 1979); Lucien Dällenbach: “Intertexte et autotexte”, Poétique, 27 (1976); Marc Angenot: “L’intertextualité’: enquête sur l’émergence et la diffusion d’un champ notionnel”, Revue des sciences humaines, 189:1 (1983); Michaël Riffaterre: La Production du texte (1979); id.: “La Trace de l’intertexte”, La Pensée, 215 (1980); id.: Sémiotique de la poésie (1982); Michael Worton e Judith Still (eds.): Intertextuality - Theories and Practices (1990); Paul Zumthor: “Intertextualité et mouvence”, Littérature, nº41 (1981); Wolf Schmid e Wolf-Dieter Stempel (eds.: Dialog der Texte: Hamburger Kolloquium zur Intertextualität (Viena, 1983).

Ivete Lara Camargos Walty e Maria Zilda Ferreira Cury
Texto disponível em:

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Morfossintaxe: adjetivo

http://www.4shared.com/document/KPNVrdnV/3_Aula_Adjetivo.html

Polêmica didática sobre conto de Ignácio de Loyola Brandão



ENSINO MÉDIO - [21/08/1o]
Livro com conto erótico causa polêmica em escolas
Cruzeiro on-line

O conto tem gerado reclamação por parte dos pais
O conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, que faz parte da coletânea “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”, distribuída pela Secretaria Estadual da Educação aos alunos da terceira série do Ensino Médio, causou polêmica também em Votorantim. Pais de estudantes de Jundiaí também se manifestaram contrários à leitura específica do texto. A coletânea, distribuída pelo Programa “Apoio ao Saber”, teria sido bem aceita como um incentivo à leitura, não fosse o conto de Ignácio de Loyola Brandão.
“Com texto até mesmo pornográfico”, disse uma inspetora de alunos de uma escola de Votorantim, avó de uma estudante de 17 anos. Embora não queira aparecer, a inspetora diz que a sociedade deve discutir a forma que o Estado está educando os jovens. Acostumada ao ambiente escolar, ela diz que mesmo os alunos do antigo 3º colegial, entre 15 e 17 anos, não têm maturidade para compreender aquele tipo de leitura. O conto retrata uma mulher casada, que recebe cartas anônimas descrevendo atos sexuais.
Para a inspetora, mesmo com toda informação que existe hoje, “é preciso analisar de que forma as coisas serão passadas. Além disso, há o constrangimento na sala de aula e o fato de que o livro não ficará restrito a esses alunos, podendo chegar às mãos dos mais jovens”. A dona de casa Rita de Cássia Ferraz Públio, cuja filha de 17 anos recebeu o livro, também se disse chocada: “não sei se estou ultrapassada, mas se fosse para discutir a sexualidade na sala de aula, deveria ser de outro jeito, e não por meio de termos tão chulos”, definiu. O porteiro Joaquim Álvaro da Nóbrega Júnior, 23 anos, classificou o conto como “pornográfico”.
Opiniões divergentes
Para o coordenador do curso de Letras da Universidade de Sorocaba (Uniso), Roberto Gil Camargo, “o conto de Loyola provoca o leitor com termos que este conhece e sabe que existe, mas não quer ouvir. Penso que antes de ir atacando uma obra literária como se ela fosse uma ideia perigosa, os pais e os professores deveriam discutir a questão da sexualidade com os adolescentes, de forma mais aberta e crítica, como deveriam, também, discutir a miséria, a fome e a destruição do planeta”.
Ele também avalia que “a sexualidade não forma nem deforma pensamento crítico. Na época da Internet, toda informação está exposta. Ainda bem, pois a informação não tem dono: ela afeta, contamina, transforma, faz a espécie evoluir”.
Já a professora universitária, doutora em Psicologia da Educação, Sônia Chebel Mercado Sparti, tem ressalvas por entender que nessa faixa etária, os jovens “estão ainda em formação, com muita curiosidade e também em meio a muito silêncio”. Ela explica que ainda hoje as famílias têm dificuldade em discutir sexo e sexualidade com os filhos, e o impacto do conto acaba sendo negativo, com o adolescente podendo achar que aquele é o modelo correto.
Sem se sentir impressionada pelos termos, mas pela forma de como a mulher é exposta, numa situação pendendo ao adultério, Sônia Chebel acredita que nesse caso o conto presta mais um desserviço do que uma contribuição. No seu ponto de vista, o conto por vezes mostra o sexo como um ato violento, ou ainda tratando tanto a figura feminina como a masculina como objeto. E questiona o porquê de, “em meio a tanta literatura, qual o benefício de incluir esse conto para os alunos do 3º ano do Ensino Médio?”
Incentivo à leitura
A Secretaria do Estado da Educação informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que o livro “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século” foi analisado e aprovado por uma comissão composta por professores de renomadas universidades, como a USP e a Universitat Heidelberg, da Alemanha, antes de seguir para as escolas. A sua distribuição, pelo Programa Apoio ao Saber, foi feita apenas para estudantes do 3º ano do Ensino Médio.
A Secretaria explica que os autores da coletânea têm textos frequentemente utilizados em exames vestibulares, além do que a “literatura tem um papel muito importante na formação da identidade cultural nacional, tanto pela difusão da língua como pela representação de mundo”, recriando realidades em suas múltiplas faces, e colocando em pauta questões sociais e históricas. “Esse exercício pode ajudar no amadurecimento e desenvolvimento da consciência crítica”, enfatiza. Defende que “textos literários que retratam a condição humana, tais como a miséria, a sexualidade, as relações de poder, a tolerância ou a intolerância religiosa, a violência contra o idoso, a criança ou a mulher, os preconceitos em geral são oportunidades previstas nos documentos legais para que a escola exerça sua função de ensinar e educar”.
Ainda segundo a assessoria, não tem motivo para que uma obra de arte, considerada por críticos e educadores adequada para uma determinada faixa etária na rede privada, não seja oferecida. A nota oficial destaca também que o Governo do Estado se esforça para estimular o hábito da leitura em seus alunos, favorecendo o aprendizado. E que foi por esse motivo que criou programas como o “Ler e Escrever” e o “Apoio ao Saber”. (Por Adriane Mendes)
Matéria disponível em:
O Conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão: